terça-feira, novembro 25, 2025

O Reino de Deus na Bíblia

 Grãos de mostarda

Salvadora persica

 João Cruzué

O Reino dos Deus é o grande tema que atravessa todo o Novo Testamento como um fio de ouro. Tudo começa com João Batista clamando no deserto: “Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus!” (Mt 3:2). Logo em seguida, o próprio Jesus inicia seu ministério com as mesmas palavras (Mt 4:17). Esse Reino não é, em primeiro lugar, um lugar no mapa, mas o governo ativo, vivo e poderoso de Deus invadindo a história humana. É Deus dizendo: “Chegou a hora de eu reinar de forma nova e definitiva no meio do meu povo e, através dele, sobre toda a criação”.

Jesus deixa claro que o Reino já chegou até nós na sua própria pessoa. Quando os fariseus o acusam de expulsar demônios por Belzebu, ele responde: “Se é pelo Espírito de Deus que eu expulso demônios, então é porque o Reino de Deus já chegou até vós” (Mt 12:28). As curas, os milagres, o perdão dos pecados, a ressurreição de mortos — tudo isso são sinais concretos, visíveis e palpáveis de que o poder do mundo futuro já está operando no presente. O Reino irrompeu como uma explosão de vida no meio de um mundo de morte.

Ao mesmo tempo, Jesus ensina que o Reino ainda não chegou em sua forma final e gloriosa. Por isso ele manda os discípulos orarem todos os dias: “Venha o teu reino” (Mt 6:10). Ele fala de um dia futuro em que os justos “brilharão como o sol no reino de seu Pai” (Mt 13:43) e em que o Filho do Homem voltará em glória para julgar as nações (Mt 25:31-46). Estamos vivendo, portanto, no “já” do Reino (ele já começou) e no “ainda não” (ainda aguardamos sua consumação). Essa tensão define a vida cristã: já somos cidadãos do Reino, mas ainda suspiramos pela sua manifestação total.

Uma das características mais chocantes do Reino é quem entra nele. Jesus diz que só entra quem se torna como uma criança: simples, dependente, sem pretensão de merecimento (Mc 10:14-15; Mt 18:3). Os ricos, os poderosos, os que confiam em si mesmos acham quase impossível passar pela “porta estreita”. Já os pobres de espírito, os pecadores que reconhecem sua miséria, as prostitutas e os cobradores de impostos arrependidos estão entrando à frente dos religiosos profissionais (Mt 21:31). O Reino subverte os valores do mundo.

Entrar e permanecer no Reino exige duas coisas inseparáveis: arrependimento verdadeiro e fé em Jesus como o Rei enviado por Deus. Não adianta ser descendente de Abraão ou cumprir rituais externos. É preciso nascer de novo, nascer “da água e do Espírito” (Jo 3:3-5). Quem entra vive uma vida transformada: ama a Deus sobre todas as coisas e ama o próximo como a si mesmo. Jesus resume toda a Lei nesses dois mandamentos e diz que deles “dependem toda a Lei e os Profetas” (Mt 22:37-40). Obediência amorosa é a marca do cidadão do Reino.

Jesus usa dezenas de parábolas para explicar como o Reino funciona. Ele é como a minúscula semente de mostarda que se torna uma grande árvore (Mt 13:31-32), como fermento que leveda silenciosamente toda a massa (Mt 13:33), como um tesouro escondido no campo ou uma pérola de valor incalculável — quem o encontra vende tudo com alegria para possuí-lo (Mt 13:44-46). É também como um banquete de casamento para o qual os convidados originais (Israel incrédulo) recusaram vir, então as portas são abertas para todos os povos, bons e maus, mas quem entrar sem a “roupa de festa” (justiça de Cristo) será expulso (Mt 22:1-14).

O crescimento do Reino é, muitas vezes, invisível aos olhos do mundo. Começa pequeno, quase imperceptível — doze pescadores galileus, uma cruz romana, um túmulo vazio —, mas avança irresistivelmente. Jesus compara isso à semente que cresce sozinha, “primeiro a erva, depois a espiga, por fim o grão cheio na espiga” (Mc 4:26-29). Um dia, porém, esse grão se tornará a maior de todas as árvores. Quando Cristo voltar, ele entregará o Reino ao Pai, após ter destruído todo domínio, autoridade e poder, inclusive a própria morte (1Co 15:24-28).

A ética do Reino é revolucionária e muitas vezes escandalosa. Bem-aventurados os pobres, os que choram, os mansos, os que têm fome e sede de justiça, os perseguidos (Mt 5:3-12). Os cidadãos do Reino amam os inimigos, abençoam quem os amaldiçoa, oram por quem os persegue, perdoam setenta vezes sete vezes, não julgam para não serem julgados, andam a segunda milha, dão a capa além da túnica. Essa vida só é possível porque o Rei já viveu tudo isso perfeitamente por nós e nos dá seu Espírito para vivermos o mesmo.

Não existe entrada no Reino sem cruz. Jesus foi coroado Rei exatamente quando foi levantado na cruz (Jo 12:32). Ele diz com todas as letras: “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias e siga-me” (Lc 9:23). Sofrimento, rejeição, humilhação fazem parte do pacote. O caminho da glória passa necessariamente pelo Calvário. Quem quiser reinar com ele precisa primeiro sofrer com ele (2Tm 2:12; Rm 8:17).

No final de tudo, o Reino será plenamente revelado em glória indizível. Haverá novos céus e nova terra, a Cidade Santa descerá como noiva adornada para seu marido, Deus habitará com os homens, enxugará toda lágrima, e não haverá mais morte, nem luto, nem choro, nem dor (Ap 21:1-4). Os redimidos de todas as tribos, línguas, povos e nações estarão diante do trono e do Cordeiro, com vestes brancas e palmas nas mãos, e reinarão para todo o sempre (Ap 7:9-17; 22:5). O Reino dos Céus terá se tornado o Reino eterno de nosso Senhor e do seu Cristo, e ele reinará pelos séculos dos séculos (Ap 11:15).

Esse é o magnífico retrato que o Novo Testamento pinta do Reino: já iniciado, crescendo escondido, avançando pela pregação do evangelho e pelo poder do Espírito, mas que explodirá em glória total quando o Rei voltar para fazer novas todas as coisas.


SP-25/11/2025.

 


domingo, novembro 23, 2025

Critica Cristã ao Humanismo Secular

 

Sol da Justiça

João Cruzué

O humanismo secular, em sua essência, estabelece o ser humano como centro absoluto da realidade e fundamento último da verdade, da moral e do sentido da vida. Ao rejeitar qualquer referência ao transcendente e reduzir a dignidade humana a um projeto exclusivamente racional e autossuficiente, essa corrente filosófica propõe uma visão antropocêntrica radical: o homem como medida de todas as coisas, independente de Deus e autor único de seus próprios valores. 

Embora apresente contribuições relevantes — como a defesa dos direitos civis, da liberdade e da valorização da ciência —, o humanismo secular incorre em profundas contradições quando pretende afirmar uma ética universal sem reconhecer um fundamento absoluto que lhe dê consistência.

Do ponto de vista cristão, a dignidade humana e os valores éticos não podem ser sustentados solidamente quando desvinculados de sua origem transcendente. Se o ser humano é apenas um produto do acaso biológico e cultural, e se não existe verdade objetiva nem propósito absoluto, então qualquer discurso sobre dignidade, justiça ou solidariedade torna-se frágil e relativo. A história demonstra que, quando a autonomia humana é elevada ao nível de princípio supremo, o resultado não é emancipação, mas frequentemente opressão: regimes totalitários do século XX, sustentados por discursos pseudocientíficos e racionalistas, provaram como o ser humano sem referência moral transcendente torna-se capaz de atrocidades legitimadas pela própria razão orgulhosa.

O humanismo secular proclama liberdade, mas muitas vezes a reduz à capacidade de cada indivíduo estabelecer seus próprios critérios sem responsabilidade diante de um Criador. 

Nessa lógica, não há fundamento sólido para condenar injustiças objetivas: se cada consciência é a única autoridade sobre si mesma, qualquer padrão moral comum torna-se arbitrário. Por isso, o secularismo frequentemente oscila entre relativismo moral e autoritarismo ético — pois, quando não há verdade objetiva, os mais fortes acabam impondo seus interesses sob o discurso de progresso ou racionalidade.

A perspectiva cristã, ao contrário, afirma que a verdadeira dignidade humana está enraizada no fato de que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus (imago Dei) e que sua liberdade só encontra plenitude quando orientada à verdade e ao bem. O Evangelho afirma que não somos autossuficientes, mas dependentes da graça e do amor divino, e que a autonomia absoluta não liberta — ela escraviza ao orgulho, ao egoísmo e à ilusão de autodomínio. 

Cristo ensina que a grandeza humana se manifesta no serviço e no amor sacrificial, e não na exaltação soberba de si mesmo.

O humanismo secular prega esperança baseada no progresso humano, mas ignora a realidade profunda do pecado e da inclinação egoísta que perpassa todas as estruturas sociais. Sem reconhecimento da queda e da necessidade de redenção, sua confiança irrestrita no homem torna-se ingenuidade teórica e imprudência prática. A história contemporânea — marcada por guerras, desigualdades extremas, exploração e cultura de descarte — evidencia que o progresso técnico não produz necessariamente progresso moral. 

Como dizia C. S. Lewis, "não adianta acelerar o trem se ele está indo na direção errada."

A crítica cristã afirma que o humanismo secular, ao tentar exaltar o homem sem Deus, acaba por reduzi-lo. Um humanismo realmente pleno só pode existir quando reconhece que a dignidade humana é dom e não conquista, e que o bem comum não se constrói apenas com ciência e poder, mas com amor, verdade, justiça e humildade diante do Criador. 

Portanto, uma sociedade verdadeiramente humana não é aquela onde o homem ocupa o trono, mas aquela onde Cristo ocupa o centro — pois somente quando Deus é Deus, o homem pode ser verdadeiramente homem.


SP- 23/11/2025.



Capítulo 18 do Livro de Jó - Bildad o Promotor e a Doutrina da Retribuição Imediata

 

Bildade - o Promotor

João Cruzué

O capítulo 18 do Livro de Jó é como uma verdadeira peça de acusação dentro de um grande processo literário. Bildad, "amigo" de Jó, levanta-se para o seu segundo discurso e tenta demonstrar, que todo sofrimento visível é prova irrefutável de culpa oculta. Ele parte da doutrina clássica da retribuição imediata – o princípio segundo o qual o justo sempre prospera e o ímpio é castigado ainda nesta vida –, tão presente no Deuteronômio e na sabedoria tradicional de Israel.

Para sustentar a tese, Bildad apresenta uma lista impressionante de dezessete imagens de castigo: a luz que se apaga, o laço que prende os pés, a fome que espera ao lado, a doença que devora a pele, o enxofre lançado sobre a tenda, a descendência cortada. Cada imagem corresponde a uma pena conhecida no antigo Oriente Próximo e na própria Torá: perda de bens, banimento, extinção da família (o temido karet) e morte sem sepultura digna. É uma argumentação que procura ser exaustiva e sem brechas.

Do ponto de vista técnico, o discurso é perfeito dentro da lógica retributiva: se o castigo chegou, é porque a culpa existiu antes. Não há espaço para inocente sofredor. Bildad age como um promotor que dispensa testemunhas e provas adicionais, pois, para ele, o próprio sofrimento já é a sentença executada. Quem cai na rede, diz ele, foi porque seus próprios planos o prenderam – uma ideia que lembra a responsabilidade objetiva pura.

Ocorre que o leitor do livro inteiro já conhece o prólogo (capítulos 1 e 2), onde vemos que o sofrimento de Jó foi autorizado num conselho celestial, sem qualquer culpa pessoal prévia. Portanto, o que Bildad considera prova cabal de delito é, na verdade, uma prova permitida por Deus para testar a fidelidade do justo. A tese da retribuição automática entra em colapso diante de um caso concreto de sofrimento inocente.

Ao longo do livro, especialmente nos discursos de Eliú e na teofania final, fica evidente que a realidade é bem mais complexa do que a fórmula “sofreu = pecou”. O próprio Deus, ao falar do redemoinho (capítulos 38–41), não explica o sofrimento, mas mostra que a justiça divina transcende os cálculos humanos simples. A sabedoria não está em aplicar a régua da retribuição, mas em confiar mesmo sem compreender tudo.

No epílogo do Livro  (42.7–9), Deus pronuncia a sentença definitiva: declara que Jó falou o que era reto a Seu respeito e que os amigos, inclusive Bildad, não o fizeram. Os três são obrigados a trazer oferta e pedir que Jó interceda por eles. Assim, o capítulo 18, tão bem construído do ponto de vista da antiga teologia da retribuição, acaba servindo como prova do equívoco dessa visão quando aplicada de forma rígida e sem misericórdia. O que parecia uma acusação irrebatível torna-se, no final, um testemunho da limitação humana diante do mistério da justiça divina.

SP-23/11/2025.






Jó Apresenta sua Defesa Jurídica no Captulo 13

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Jó e seus amigos.

João Cruzué

O capítulo 13 do Livro de Jó representa um dos textos mais relevantes da literatura jurídica universal, constituindo verdadeiro manifesto sobre o direito de defesa e o devido processo legal. Jó, após refutar os argumentos de seus interlocutores nos capítulos anteriores, estabelece neste momento sua pretensão de apresentar formalmente sua causa diretamente perante Deus, dispensando intermediários que considera corruptos e incompetentes. A estrutura argumentativa do capítulo revela profundo conhecimento de princípios processuais que seriam formalizados milênios depois nos sistemas jurídicos modernos. Três elementos centrais emergem do texto: a reivindicação do acesso direto à justiça, a denúncia da má-fé dos acusadores, e a exigência de fundamentação específica das acusações.

O primeiro princípio jurídico fundamental articulado por Jó encontra-se no versículo 3: "Mas eu falarei ao Todo-Poderoso e desejo defender-me perante Deus". Esta declaração estabelece o direito inalienável à autodefesa (ius defensionis), reconhecido posteriormente em todos os sistemas jurídicos civilizados. O texto expressa não apenas o desejo de ser ouvido, mas a necessidade de apresentar razões diretamente ao julgador, sem intermediação de terceiros interessados. Este princípio corresponde ao audiatur et altera pars do direito romano e ao direito ao contraditório consagrado no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal brasileira. A formulação de Jó antecipa em cerca de três milênios a construção teórica do devido processo legal substantivo e procedimental.

Nos versículos 4 a 7, Jó articula denúncia gravíssima contra seus interlocutores, acusando-os de serem "inventores de mentiras" e "médicos que de nada valem", chegando ao ponto de questioná-los: "Falareis perversamente por Deus e por ele falareis enganosamente?". Esta passagem estabelece princípio revolucionário: a vedação ao falso testemunho é absoluta, não admitindo exceções mesmo quando o beneficiário seja Deus. O texto afirma que nenhuma lealdade partidária, religiosa ou institucional justifica a corrupção da verdade processual. Este posicionamento antecipa a vedação ao falso testemunho (Êxodo 20:16, Código Penal brasileiro, art. 342) e fundamenta a exigência contemporânea de imparcialidade dos órgãos acusadores.

O versículo 15 contém uma das declarações mais poderosas sobre presunção de inocência já formuladas: "Ainda que ele me mate, nele esperarei; contudo, os meus caminhos defenderei diante dele". Jó assume o risco existencial extremo, mas não abdica do direito de defesa nem da afirmação de sua inocência. Esta passagem estabelece que a presunção de inocência não é concessão da autoridade, mas direito natural oponível até mesmo contra Deus. O texto transfere claramente o ônus da prova ao acusador, princípio expresso no brocardo latino ei incumbit probatio qui dicit, non qui negat e consagrado no artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal.

No versículo 22, Jó estrutura proposta revolucionária de contraditório bilateral: "Chama, e eu responderei; ou falarei eu, e tu me responderás". O texto não apenas reivindica ser ouvido, mas estabelece procedimento dialético com alternância de manifestações, garantindo paridade de armas entre acusação e defesa. Esta formulação antecipa o sistema acusatório moderno, no qual as partes têm igual oportunidade de manifestação perante o julgador imparcial. O modelo proposto por Jó corresponde ao contraditório dinâmico e efetivo exigido pela jurisprudência contemporânea do Supremo Tribunal Federal e da Corte Europeia de Direitos Humanos.

A exigência de fundamentação específica das acusações aparece no versículo 23: "Quantas culpas e pecados tenho eu? Notifica-me a minha transgressão e o meu pecado". Jó não aceita acusação genérica ou imotivada, demandando especificação precisa dos fatos imputados. Este princípio corresponde à exigência de motivação das decisões judiciais (CF/88, art. 93, IX) e à especificidade da acusação criminal (CPP, art. 41). A doutrina processual contemporânea reconhece que acusações genéricas violam o direito de defesa, impedindo a formulação de estratégia defensiva adequada. O texto de Jó estabelece que o direito fundamental não é apenas ser acusado, mas conhecer precisamente do que se é acusado.

Por fim, nos versículos 24 a 25, Jó questiona a proporcionalidade da persecução: "Por que escondes o teu rosto e me tens por teu inimigo? Acaso perseguirás uma folha arrebatada? Perseguirás restolho seco?". A metáfora da folha seca perseguida por poder infinito estabelece o princípio da proporcionalidade entre gravidade da falta e intensidade da punição. Este questionamento antecipa a teoria alemã da proibição do excesso (Übermassverbot) e o princípio constitucional da razoabilidade. Jó 13 oferece, portanto, fundamentos atemporais para um sistema de justiça que equilibre efetividade punitiva com proteção da dignidade humana, princípios que permanecem centrais em todos os ordenamentos jurídicos contemporâneos.


SP-23/11/2025.





Salmo 3 - A Batalha de Oração de Davi

 

Morte de Absalão - Quadro de Corrado Giaquinto

João Cruzué

Salmo 3 surge como testemunho vigoroso de fé pronunciado no ápice de crise existencial e política. Davi, fugindo de   (אַבְשָׁל - Avshalom), seu próprio filho, experimenta a ruptura de tudo aquilo que sustentava sua identidade real. A aflição é profunda e : militar, familiar e espiritual. Seus numerosos adversários agora (רַבִּים – rabbim) o cercam e declaram com crueldade teológica: “אֵין יְשׁוּעָה לוֹ בֵּאלֹהִים – Ein yeshuah lo b’Elohim”:  “Não há salvação para ele em Deus.” O salmo inicia-se como lamento autêntico, expondo a alma ferida diante do Altíssimo.

No ponto de inflexão, Davi recusa ser interpretado pela aparência do desastre e redireciona sua visão à realidade superior do pacto. A declaração central rompe a escuridão: “וְאַתָּה יְהוָה מָגֵן בַּעֲדִי – Ve’attah Adonai magén ba’adí”:  “Porém Tu, Senhor, és um escudo ao redor de mim.” O termo מָגֵן – magén indica escudo arredondado, proteção integral de 360°. Ele afirma ainda: “כְּבוֹדִי וּמֵרִים רֹאשִׁי – minha glória e o que exalta a minha cabeça”. Assim, a honra (כָּבוֹד – kavôd) e a dignidade restauradas não provêm da política, mas da presença do Deus de Israel.

Segue então o glorioso paradoxo da confiança: enquanto cercado, Davi declara: “אֲנִי שָׁכַבְתִּי וָאִישָׁנָה – Ani shachavti va’ishanah”: “Eu me deitei e dormi.” O repouso não é fisiológico, mas teológico: שָׁעַן – sha’an, “sustentar”, implica apoio estrutural. Ele desperta e reconhece: “כִּי יְהוָה יִסְמְכֵנִי – Ki Adonai yismekhêni”“Pois o Senhor me sustenta.” O medo transforma-se em coragem absoluta: mesmo diante de “רִבְבוֹת – rivvavot” (dezenas de milhares) de adversários, ele declara não temer, pois sua segurança não está nos exércitos, mas em יְהוָה – YHWH.

O clamor final explode em linguagem litúrgica de guerra: “קוּמָה יְהוָה – Kumah Adonai”“Levanta-Te, Senhor!”. O pedido para “ferir seus inimigos na face” e “quebrar os dentes dos ímpios” (“שִׁבַּרְתָּ שִׁנֵּי רְשָׁעִים – shibbarta shinei resha’im”) utiliza metáfora jurídica, retirando dos adversários o poder destrutivo. Aqui Deus é o Guerreiro Santo (אֵל גִּבּוֹר – El Gibbôr), que intervém e restabelece justiça.

O clímax teológico encerra o salmo com uma das frases mais densas das Escrituras: “לַיהוָה הַיְשׁוּעָה – La’Adonai haYeshuah”“Do Senhor vem a salvação.” O termo יְשׁוּעָה – yeshuah aponta para libertação divina completa e soberana. A bênção final se expande para além do indivíduo: “עַל עַמֶּךָ בִּרְכָתֶךָ – Al ammekha birchatecha”“Sobre o Teu povo seja a Tua bênção.” 

Assim, o Salmo 3 revela que crises pessoais transformadas em fé irradiam graça coletiva. Nenhuma noite é longa demais quando Deus é o מָגֵן – escudo, nenhum inimigo é grande demais quando יְהוָה é a fonte da יְשׁוּעָה, e nenhum sofrimento é inútil quando conduz à bênção sobre o povo de Deus.


SP- 23/11/2025.


sexta-feira, novembro 21, 2025

As Imagens que João viu no Apocalipse

 

João viu a Eterna Cidade

João Cruzué

João, o apóstolo amado, recebeu uma revelação sublime enquanto se encontrava exilado na solitária ilha de Patmos, para escrever o Livro do Apocalipse. Ali, arrebatado em espírito, contemplou inicialmente a figura majestosa de Cristo ressuscitado, não mais velado pela fragilidade humana, mas resplandecendo em plena glória divina. Seus olhos cintilavam como labaredas ardentes, sua voz ressoava como o estrondo de muitas águas, e o esplendor de seu rosto irradiava como a luz do sol em seu auge. Essa visão inaugural estabeleceu o fundamento do livro: a história humana não é um curso aleatório, mas está submetida à soberania absoluta do Cordeiro, Senhor da Igreja.

Conduzido às alturas celestes, João contemplou o trono de Deus, circundado por anjos e pelos vinte e quatro anciãos que, em reverência incessante, lançavam suas coroas diante daquele que vive pelos séculos dos séculos. Entre cânticos de adoração e reverência indescritível, João viu o Cordeiro aproximar-se para tomar o livro selado, símbolo do plano perfeito de Deus para o destino de todas as coisas. Somente Ele era digno de rompê-lo, e à medida que os selos eram abertos, o curso divino da história começava a revelar-se diante dos olhos do profeta.

João contemplou a sucessão dos juízos representados pelos sete selos, pelas sete trombetas e pelas sete taças da ira divina. Eram sinais de convulsões cósmicas, guerras, fome, pestes e terremotos que abalariam a terra, expressando a justiça de Deus contra a rebelião humana. Contudo, em meio à dor e ao estremecimento do mundo, João vislumbrou uma multidão incontável, redimida pelo sangue do Cordeiro, proveniente de todos os povos e línguas, em perfeita adoração diante do trono — testemunho de que a misericórdia de Deus permanece e alcança aqueles que nele confiam.

O apóstolo também viu revelado o drama espiritual que permeia a realidade humana: a mulher vestida de sol, símbolo do povo de Deus, perseguida pelo grande dragão vermelho, figura de Satanás, o adversário eterno. Observou a ascensão da besta que emerge do mar e da besta que sobe da terra, ambas expressões terríveis do poder anticristão que domina os homens e impõe a marca da besta — sinal de submissão a um sistema mundano que se opõe a Deus. O mal alcança força e aparente triunfo, mas sua derrota é inevitável e já decretada.

João viu o juízo da grande Babilônia, imagem do sistema global corrompido por idolatria, violência e arrogância espiritual. Assistiu à sua queda repentina, celebrada com cânticos de triunfo no céu, anunciando o fim da soberba humana e o início da vitória plena do Cordeiro. Em seguida, contemplou Cristo regressando em majestade, montado em um cavalo branco, coroado com múltiplas diademas e denominado Verbo de Deus, vencendo o Anticristo e o falso profeta, lançados vivos no lago de fogo.

Na continuidade da visão, João viu Satanás ser aprisionado por mil anos e Cristo reinar com os santos em um tempo de justiça e paz. Mas ao fim deste período, o inimigo seria solto por um breve instante, reunindo nações para uma última rebelião, imediatamente esmagada pela palavra do Senhor. 

Então João viu o grande Trono Branco, diante do qual toda a humanidade ressuscitada comparece e é julgada segundo suas obras; e quem não foi encontrado inscrito no Livro da Vida foi lançado ao lago de fogo, consumando o juízo final.

Diante de seus olhos maravilhados, surgiu um novo céu e uma nova terra, purificados de toda corrupção e sofrimento. 

Por fim, João viu a Nova Jerusalém descendo da presença de Deus como uma noiva adornada para seu esposo. E ouviu a promessa suprema: “Eis que o tabernáculo de Deus está com os homens.” Lá, não haverá mais pranto, dor, morte ou escuridão; ali fluem o rio da água da vida e a árvore da vida, oferecendo cura e alegria perpétua. Assim termina a visão sublime do Apocalipse: não com temor, mas com esperança eterna, proclamando a vitória definitiva de Cristo e convidando os fiéis à perseverança até o glorioso dia em que Ele virá.


SP-21/11/2025.







O Processo da Secularização pela Ótica do Pensamento Cristão Conservador

 

Ocaso

João Cruzué

Sob a ótica do pensamento cristão conservador, o fenômeno da secularização configura-se como uma das transformações mais inquietantes e profundas da civilização ocidental, caracterizando-se pelo gradual mas inexorável eclipse da cosmovisão cristã tanto da esfera pública quanto da consciência coletiva. Longe de constituir mero epifenômeno histórico ou desenvolvimento espontâneo das sociedades modernas, tal processo é interpretado como um movimento sistemático de descristianização que corrói as próprias fundações morais, culturais e espirituais sobre as quais o Ocidente ergueu sua identidade ao longo de dois milênios. O próprio Cristo, em Lucas 18:8, apresenta este retrato.

Trata-se, nesta perspectiva, de uma apostasia civilizacional na qual verdades perenes, derivadas da revelação divina, são preteridas em favor de construções antropocênicas contingentes e falíveis, enquanto a sabedoria transcendente cede terreno à hybris da autonomia individual e ao relativismo ético que dissolve toda ancoragem normativa absoluta. A genealogia deste processo remonta, segundo os exegetas conservadores, a inflexões históricas precisas, particularmente ao advento do Iluminismo, quando a razão humana emancipada de qualquer tutela heterônoma passou a arrogar-se primazia epistemológica sobre a revelação divina.

O racionalismo cartesiano, o empirismo lockiano e, posteriormente, o positivismo comteano teriam engendrado uma arquitetura epistemológica que relegou a fé religiosa ao domínio do subjetivo e do irracional, destituindo-a de sua legitimidade como via de acesso à verdade. A Revolução Francesa emerge como momento paroxístico deste embate, quando a iconoclastia anticristã e as tentativas de instituir cultos seculares substitutivos revelaram as ambições totalizantes do projeto secularista. Ao longo dos séculos XIX e XX, este movimento adquiriu momentum acelerado mediante o florescimento de ideologias materialistas: o darwinismo social, o marxismo, o existencialismo ateu, o nietzscheanismo e, mais recentemente, o desconstrucionismo pós-moderno convergiram na contestação sistemática dos fundamentos teológicos e metafísicos da tradição cristã ocidental.

As manifestações contemporâneas da secularização revelam uma penetração capilar em todas as dimensões da existência social. No plano jurídico-institucional, testemunha-se a expurgação progressiva de símbolos, valores e práticas cristãs dos espaços públicos, operação justificada retoricamente pela invocação da neutralidade estatal, mas que, em sua práxis efetiva, configura a imposição velada de uma nova ortodoxia secular com seus dogmas irrefutáveis e seus tabus invioláveis. 

O princípio da separação entre Igreja e Estado, originalmente concebido como salvaguarda da liberdade de consciência e anteparo contra a coerção religiosa, sofreu uma inversão hermenêutica, transmutando-se em instrumento de marginalização sistemática da voz cristã no ágora deliberativa.

No âmbito cultural, observa-se a erosão acelerada do ethos moral tradicional fundado na cosmovisão bíblico-teológica, particularmente quanto às instituições basilares da família, da sexualidade humana, da sacralidade da vida e da identidade antropológica, domínios nos quais paradigmas relativistas e utilitaristas, divorciados de qualquer ancoragem transcendente ou respeito pela lei natural, operam uma radical reconfiguração normativa. 

O campo educacional constitui arena de singular importância neste conflito civilizacional, configurando-se como locus privilegiado onde a secularização não se efetiva mediante genuína neutralidade axiológica, mas através da imposição sub-reptícia de uma nova ortodoxia secular-progressista que obstrui deliberadamente a transmissão intergeracional do patrimônio espiritual e intelectual cristão.

A proscrição do ensino religioso confessional, a relativização ética nos currículos pedagógicos e a promoção de ideologias contrárias aos valores cristãos são interpretadas como estratégias deliberadas de engenharia social direcionadas à formação de subjetividades secularizadas. Concomitantemente, os aparatos midiáticos e a indústria cultural desempenham papel instrumental na consolidação da hegemonia secular, ridicularizando sistematicamente as expressões de fé, normalizando condutas antagônicas à moral cristã e representando o cristianismo como anacronismo repressivo e obscurantista. 

Esta colonização do imaginário coletivo gera um ambiente social hostil à manifestação pública da religiosidade, induzindo autocensura entre os fiéis e excluindo hermenêuticas teológicas do discurso culturalmente legitimado.

Segundo a análise cristã conservadora, as consequências deste desmoronamento espiritual revelam-se devastadoras tanto para os indivíduos quanto para o tecido social. A obliteração do horizonte transcendente e do telos divino da existência teria precipitado crises existenciais generalizadas, manifestas nas epidemias contemporâneas de depressão, ansiedade, suicídio e dependências químicas que assolam as sociedades secularizadas. A desintegração da família tradicional, a banalização hedonista da sexualidade, a cultura thanática do aborto e a negação ideológica de realidades biológicas elementares constituem sintomas de uma civilização que perdeu suas coordenadas morais fundamentais. 

Na ausência do reconhecimento de uma lex aeterna objetiva, fundamentada na natureza divina, a sociedade fica à mercê da lei do mais forte, da volubilidade das maiorias circunstanciais ou do arbítrio de elites intelectuais autorreferenciadas, tornando impossível a fundamentação consistente da dignidade humana inalienável e dos direitos fundamentais.

Diante deste diagnóstico civilizacional, os cristãos conservadores articulam estratégias multifacetadas de resposta. Uma corrente advoga o engajamento direto nas esferas cultural e política, buscando reconquistar espaços institucionais perdidos e influenciar a produção legislativa segundo princípios derivados da revelação bíblica. Outra vertente enfatiza a necessidade de construir instituições paralelas resilientes, comunidades intencionais e redes educacionais alternativas que preservem e transmitam intacta a fé apostólica às gerações futuras. Uma terceira abordagem privilegia a evangelização pessoal e o testemunho existencial, confiando que a genuína metamorfose social só se efetiva mediante a conversão individual dos corações. 

Independentemente das divergências estratégicas, prevalece o consenso sobre a imperiosidade de resistir à secularização, não por nostalgia de privilégios institucionais pretéritos ou por ressentimento reacionário, mas por convicção arraigada de que o cristianismo custodia verdades essenciais sobre Deus, a humanidade e a estrutura da realidade, verdades estas indispensáveis ao florescimento humano integral. 

A esperança cristã conservadora ancora-se na fidelidade incondicional à revelação escriturística e na confiança teológica de que a verdade de Cristo permanece relevante e eficaz, dotada de poder transformador capaz de renovar indivíduos e transfigurar culturas, mesmo em contextos aparentemente refratários ou abertamente hostis ao Evangelho.


SP-21/11/2025.




O Livro do Profeta Profeta Amós na Interpretação do Claude IA

 

Campo de Girassóis

A
nálise do Livro do Profeta Amós

Capítulo 1: Oráculos contra as Nações

Amós inicia seu ministério profético com uma série de oráculos de julgamento contra as nações vizinhas de Israel. O profeta, que era pastor de ovelhas e cultivador de sicômoros de Tecoa, profetiza durante os reinados de Uzias em Judá e Jeroboão II em Israel, aproximadamente dois anos antes de um grande terremoto.

A estrutura literária deste capítulo é notável: cada oráculo segue um padrão repetitivo ("Por três transgressões... e por quatro, não revogarei o castigo"). Amós condena Damasco (Síria) por sua crueldade em Gileade, Gaza (Filisteia) pelo tráfico de escravos, Tiro por quebrar tratados de fraternidade, Edom por perseguir seu irmão sem misericórdia, e Amom por crimes de guerra contra Gileade.

Esta técnica retórica é brilhante: ao começar com nações estrangeiras, Amós conquista a atenção e aprovação de seu público israelita, que naturalmente concordaria com julgamentos sobre seus inimigos. Isso prepara o terreno para a bomba que virá nos capítulos seguintes.

Capítulo 2: Judá e Israel sob Julgamento

O capítulo continua o padrão dos oráculos contra Moabe, depois surpreendentemente se volta contra Judá, e finalmente atinge o verdadeiro alvo: Israel (reino do norte). Moabe é condenado por profanar os ossos do rei de Edom, demonstrando que até os mortos merecem respeito.

Judá é acusado de desprezar a lei do Senhor e não guardar seus estatutos, deixando-se enganar por mentiras. Mas é contra Israel que Amós dirige suas acusações mais severas: vendem o justo por dinheiro, oprimem os pobres, profanam o nome santo de Deus, e desprezam os nazireus e profetas que Deus enviou.

O profeta relembra como Deus libertou Israel do Egito, destruiu os amorreus diante deles, e levantou profetas entre seus filhos. A ingratidão e apostasia de Israel são, portanto, ainda mais graves. O julgamento virá de forma inescapável - nem o mais rápido, nem o mais forte, nem o mais valente conseguirá fugir.

Capítulo 3: A Responsabilidade da Eleição

Amós apresenta aqui um dos conceitos teológicos mais profundos: "De todas as famílias da terra, somente a vós escolhi; portanto, todas as vossas iniquidades visitarei sobre vós." A eleição divina não é privilégio para impunidade, mas responsabilidade aumentada.

O profeta usa uma série de sete perguntas retóricas que demonstram relações de causa e efeito na natureza e na vida, concluindo que quando Deus fala através do profeta, não há como não profetizar. Se há efeito (a profecia), há causa (a revelação divina).

Amós convoca as próprias nações pagãs - Asdode e Egito - para testemunharem contra Israel, observando os tumultos e opressões em Samaria. É uma ironia devastadora: os pagãos são chamados para julgar o povo de Deus. A cidade que deveria ser luz será saqueada, e apenas restos serão salvos, como um pastor resgata da boca do leão apenas duas pernas ou um pedaço de orelha.

Capítulo 4: A Recusa ao Arrependimento

Este capítulo contém alguns dos textos mais contundentes de Amós. Ele chama as mulheres ricas de Samaria de "vacas de Basã" que oprimem os pobres e esmagam os necessitados enquanto pedem mais bebida a seus maridos. O julgamento virá e elas serão levadas com ganchos.

O profeta ridiculariza a religiosidade hipócrita de Israel: "Vinde a Betel e transgredi; a Gilgal e multiplicai as transgressões." Os rituais religiosos abundantes não impressionam Deus quando há injustiça social.

Segue-se então um refrão sombrio repetido cinco vezes: "Contudo, não vos convertestes a mim, diz o Senhor." Deus enviou fome, seca, pragas, guerras - todos os julgamentos progressivos para chamar Israel ao arrependimento, mas o povo permaneceu obstinado. O capítulo termina com a advertência mais solene: "Prepara-te, ó Israel, para te encontrares com o teu Deus."

Capítulo 5: Lamento e Chamado à Justiça

Amós entoa uma lamentação fúnebre por Israel como se a nação já estivesse morta: "Caiu a virgem de Israel, nunca mais se levantará." Dez por cento da população sobreviverá aos julgamentos vindouros.

Mas ainda há esperança: "Buscai-me e vivei... Buscai o bem e não o mal, para que vivais." O profeta contrasta a idolatria praticada em Betel, Gilgal e Berseba com a busca genuína por Deus.

O coração da mensagem de Amós aparece aqui: "Corra, porém, o juízo como as águas, e a justiça, como ribeiro perene." Deus não se interessa por festividades e ofertas quando há injustiça. A religião externa sem ética social é abominação.

O capítulo termina com uma advertência sobre o "Dia do Senhor" que muitos em Israel esperavam ansiosamente, pensando que seria vitória sobre inimigos. Amós reverte essa expectativa: será trevas e não luz, como alguém que foge de um leão e encontra um urso.

Capítulo 6: A Falsa Segurança

Amós pronuncia um "ai" sobre os que vivem sossegados em Sião e confiam na montanha de Samaria. A elite está vivendo em luxo decadente: deitados em camas de marfim, comendo cordeiros escolhidos, cantando ao som de instrumentos, bebendo vinho em taças, usando os melhores óleos - mas não se entristecem pela ruína de José.

O profeta menciona a arrogância de Israel que se compara favoravelmente com outras nações, sem perceber que o mesmo destino as aguarda. Deus abomina a soberba de Jacó e odeia seus palácios.

Há uma crítica mordaz à inversão de valores: transformaram o juízo em veneno e o fruto da justiça em absinto. Gloriam-se em conquistas militares enquanto ignoram que Deus levantará uma nação contra eles que os oprimirá desde a entrada de Hamate até o ribeiro da Arabá.

Capítulo 7: Três Visões e o Confronto com Amazias

Este capítulo marca uma mudança literária com a apresentação de visões simbólicas. Amós vê gafanhotos devorando a colheita, depois fogo consumindo a terra. Em ambas as visões, o profeta intercede: "Ó Senhor Deus, perdoa, rogo-te; como subsistirá Jacó? Pois ele é pequeno." Deus se arrepende e não envia esses julgamentos.

Na terceira visão, Deus aparece com um prumo de pedreiro, testando a verticalidade moral de Israel. Desta vez não há intercessão - o julgamento é inevitável. Os santuários de Israel serão destruídos e a casa de Jeroboão será morta à espada.

Segue-se o confronto dramático com Amazias, sacerdote de Betel, que acusa Amós de conspiração e ordena que ele volte para Judá. A resposta de Amós é magistral: "Eu não sou profeta, nem discípulo de profeta, mas boieiro e cultivador de sicômoros. Mas o Senhor me tirou de após o gado e me disse: Vai e profetiza ao meu povo de Israel."

Amós então profetiza julgamento específico sobre Amazias: sua mulher se prostituirá na cidade, seus filhos morrerão à espada, sua terra será repartida, e ele morrerá em terra imunda, enquanto Israel irá para o cativeiro.

Capítulo 8: A Visão do Cesto de Frutos

Na quarta visão, Amós vê um cesto de frutos de verão (qayits em hebraico), e Deus declara que chegou o fim (qets) para Israel. É um jogo de palavras que indica que a maturação do julgamento está completa.

O profeta retorna à denúncia da exploração econômica: comerciantes que mal podem esperar o fim do sábado para voltar a fraudar, usando balanças enganosas, vendendo o refugo do trigo, comprando os pobres por um par de sandálias.

Virá uma fome diferente: "não de pão, nem sede de água, mas de ouvir as palavras do Senhor." As pessoas andarão de um lado para outro buscando palavra de Deus e não a encontrarão. É o julgamento mais severo - o silêncio divino.

A terra tremerá, o sol se porá ao meio-dia, as festas se converterão em luto. Será amargura como a perda de um filho único.

Capítulo 9: Julgamento e Restauração Final

O capítulo final começa com a quinta visão: Deus junto ao altar ordenando destruição total. Ninguém escapará - nem quem cavar até o Sheol, nem quem subir ao céu, nem quem se esconder no cume do Carmelo ou no fundo do mar.

Há uma advertência solene: Deus vigia Israel para o mal e não para o bem. Embora Israel pense que é especial, Deus questiona: "Não sois vós para mim, ó filhos de Israel, como os filhos dos etíopes? Não fiz eu subir a Israel da terra do Egito, e também os filisteus de Caftor e os siros de Quir?"

O reino pecador será destruído, mas há uma promessa: Deus não destruirá totalmente a casa de Jacó. Será como joeirar com peneira - os seixos (ímpios) cairão, mas o trigo (remanescente) será preservado.

O livro termina com esperança surpreendente: "Naquele dia, levantarei o tabernáculo caído de Davi." Haverá restauração: plantarão vinhas e beberão seu vinho, farão jardins e comerão seus frutos. Deus os plantará na sua terra e nunca mais serão arrancados.

Esta conclusão otimista pode parecer inconsistente com o tom anterior, mas revela a teologia profética completa: julgamento não é o fim, mas purificação que leva à restauração. A justiça de Deus exige punição do pecado, mas seu amor garante preservação de um remanescente e eventual restauração messiânica.




segunda-feira, novembro 17, 2025

Amós Capitulo 9 - Tempo de derrubar

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Amós, capítulo 9

João Cruzué

Há algo perturbador na visão que se abre no capítulo 9 de Amós: o Senhor não está no altar para receber ofertas, mas para destruí-lo. Golpeia os capitéis, faz tremer os umbrais, despedaça tudo sobre a cabeça dos presentes. É o  colapso das instituições sagradas, o desmoronamento de tudo aquilo que parecia sólido como pedra.

Para quem vivia naquela época, o templo era mais que um edifício religioso. Era o símbolo da presença divina, a garantia de proteção, o centro da identidade nacional. Ver Deus destruindo seu próprio santuário era como assistir um pai incendiando a casa da família. Não faz sentido. Não deveria acontecer. Mas acontece.

Talvez seja esse o ponto mais incômodo da profecia de Amós: Deus não está preso às nossas instituições religiosas. Ele não é refém de nossas tradições, por mais antigas e veneráveis que sejam. Quando essas estruturas se tornam cúmplices da injustiça, quando servem para encobrir a opressão ao invés de combatê-la, elas mesmas se tornam alvos do juízo divino.

O texto tem uma ironia cruel. O povo achava que estava seguro porque tinha o templo, os rituais corretos, a linhagem certa. Mas Amós destrói essa ilusão com uma pergunta devastadora: "Não sois para mim como os etíopes, ó israelitas?" Ou seja, vocês que se acham tão especiais, tão diferentes, tão superiores aos outros povos — o que os torna melhores? A resposta implícita é: nada! Absolutamente nada.

E então vem aquela perseguição implacável. Não adianta fugir, cavar, escalar, mergulhar. Os olhos de Deus estão sobre eles "para o mal, e não para o bem". É uma inversão total da teologia confortável. O Deus que deveria proteger agora persegue. O Deus que deveria abençoar agora sentencia.

Mas há uma reviravolta no final do capítulo que não pode ser ignorada. Depois de toda devastação, surge a promessa de reconstrução. Não imediatamente, não sem consequências, mas eventualmente. A casa de Jacó não será totalmente destruída. Deus vai peneirar Israel entre as nações como se peneira grãos, mas não deixará nenhum grão cair na terra.

Essa imagem da peneira é fascinante. 

Deus não descarta tudo — separa. Elimina a palha, mas conserva o grão. O exílio não é apenas castigo, é também purificação. A destruição não é fim, é recomeço. As ruínas da tenda de Davi serão reerguidas, os muros reconstruídos.

O que Amós profetiza no capítulo 9 é uma espécie de morte para ressurreição. Não dá para reformar a estrutura apodrecida; é preciso deixá-la cair. Não dá para maquiar a injustiça com piedade; é preciso extirpar o mal pela raiz. Só depois, sobre os escombros da arrogância e da hipocrisia, é que se pode edificar algo verdadeiro.

Vivemos tempos em que muitas certezas estão desabando. 

Instituições que pareciam eternas estão se revelando frágeis. Lideranças que se diziam ungidas estão se mostrando corruptas. Sistemas que prometiam justiça perpetuam desigualdades. E talvez, como nos dias de Amós, precisemos ouvir que nem tudo que rui merecia ficar de pé.

A grande questão é: estamos dispostos a ser peneirados ou preferimos nos agarrar às ruínas, fingindo que o altar não está rachando?

 

SP-17/11/2025.

terça-feira, novembro 11, 2025

Plano de Viagem de Abrão - De Ur à cidade de Harã em 110 dias


 

Subindo de Ur para Harã
João Cruzué

Se Abrão fosse bom ouvinte, faria o planejamento da saída de Ur no começo de março, para depois de 90 a 110 dias, chegar em Harã, no máximo até meados de junho.

Consultado a climatologia da Região do Vale do Eufrates, onde a estação chuvosa acontece principalmente no  inverno, Abrão e sua comitiva devem ter saído no final do inverno, ali pelo mês e março, quando a temperatura média estava entre  14º pela madrugada e  29º durante à tarde. 

A medida que subiam pelas margens do Rio Eufrates (Ramadi/Deir ez Nor) em direção à Harã, as temperaturas dubiam um pouco. mìnima de 17º e máxima de 33º

Do trecho final da viagem, estariam no mês de maio em que as temperaturas permaneceriam igual, no Sudeste da atual Turquia, com mínima de 17º e máxima de 34º.

Se viajasse durante o período chuvoso, poderia ser surprendido por alguma tempestade. Se viajase depois do mês de maio, as pastagens já não estariam tão verdes. Se viajasse depois de junho, o calor poderia ir além dos 40º.

Quanto tempo ele ficou em Harã, já é assunto para outra pesquisa.


SP-11/11/2025.





Biografia do Pastor Chinês Watchmann Nee para Cristãos Adultos

 

João Cruzue - Tradução.

Fonte: https://www.watchmannee.org/life-ministry.html

Título Original: Watchmann Nee's Life and Ministry

Nota: A Biografia do Pastor Watchmann disposta nesta versão não possui o mesmo conteúdo da versão cuja fonte voidspace.org tive acesso em 2008 e foi descontinuada.


A OBRA DINÂMICA DA SALVAÇÃO DE DEUS

A partir do século XVI, os primeiros missionários protestantes chegaram à China levando o evangelho. Mas, somente nos primeiros anos do século XX, após anos de trabalho fiel e oração, o mover do Senhor na China começou a avançar de modo notável, especialmente depois do martírio de muitos cristãos durante a Rebelião dos Boxers.

Na década de 1920, muitos cristãos levantados pelo Senhor dentre os estudantes do ensino médio e universitários por toda a China tornaram-se instrumentos fundamentais na propagação do evangelho. Entre esses estudantes estava Nee Shu-tsu  que foi chamado e preparado pelo Senhor para a Sua obra. Mais tarde ele se conhecido como Watchman Nee.

Nee Shu-tsu nasceu em 1903, em Foochow, China, de pais cristãos de segunda geração. Seu avô paterno estudou no American Congregational College de Foochow e tornou-se o primeiro pastor chinês entre os Congregacionalistas na província norte de Fukien. Ele foi consagrado ao Senhor antes mesmo de nascer. Desejando um filho, sua mãe orou ao Senhor dizendo

--Se eu tiver um menino, eu o apresentarei a Ti.

O Senhor respondeu àquela oração com o nascimento de um filho. Mais tarde, seu pai reforçou esse fato dizendo-lhe: “Antes de você nascer, sua mãe prometeu apresentar-lhe ao Senhor.”

Nee Shu-tsu possuía inteligência excepcional. Desde o ingresso na escola primária até a formatura no Anglican Trinity College de Foochow, manteve-se em primeiro lugar tanto na classe quanto na escola. Com grandes sonhos e planos para o futuro, poderia ter alcançado grande sucesso no mundo. Entretanto, em 1920, aos 17 anos, após intensa luta interior, Nee Shu-tsu foi dinamicamente salvo enquanto ainda cursava o ensino médio. No momento da sua salvação, abandonou completamente seus planos pessoais para o futuro. Ele testemunhou:

--Desde a noite em que fui salvo, comecei a viver uma nova vida, pois a vida do Deus eterno havia entrado em mim.

Mais tarde, quando foi chamado pelo Senhor para cumprir Sua comissão, adotou o nome inglês Watchman (“vigia”, “sentinela”) e o nome chinês To-sheng, que significa “o som do chocalho de um vigia”. Escolheu esse nome porque se considerava um sentinela levantado para soar o toque de advertência na noite escura.


EQUIPAMENTO E TREINAMENTO

Watchman Nee [segundo esta fonte] não frequentou escolas teológicas nem institutos bíblicos. Sua ampla compreensão do propósito de Deus, de Cristo, do Espírito e da Igreja foi adquirida por meio do estudo diligente da Bíblia, da leitura de livros espirituais e da busca pessoal das realidades espirituais. Nee recebeu revelação por meio do estudo atento da Palavra. Muitos dos métodos que empregava estão registrados em seu livro Como Estudar a Bíblia (How to Study the Bible). Ele também leu obras espirituais de inúmeros servos do Senhor ao longo da história da Igreja.

Nos primeiros anos de seu ministério, ele destinava um terço de sua renda para suas necessidades pessoais, um terço para ajudar outros e um terço para adquirir livros espirituais. Assim, reuniu uma biblioteca de mais de três mil dos melhores livros cristãos, incluindo quase todas as obras clássicas desde o primeiro século. Watchman Nee tinha habilidade extraordinária para selecionar, compreender, discernir e memorizar o que era relevante, apreendendo rapidamente as ideias principais de cada obra. Dessa forma, conseguiu extrair delas as verdades bíblicas e princípios espirituais que o Senhor havia revelado ao longo da história e incorporá-los à sua própria experiência cristã e à vida da igreja.

Nee recebeu grande iluminação e auxílio de diversos escritores cristãos, em especial quanto a determinados pontos de verdade:

1. A certeza da salvação - George Cutting (irmãos de Plymouth);

2. A vida divina - O Peregrino (Pilgrim’s Progress), de John Bunyan; Madame Guyon; Hudson Taylor;

3. Cristo - J. G. Bellett, Charles G. Trumbull, A. B. Simpson, T. Austin-Sparks;

4. O Espírito - O Espírito de Cristo (The Spirit of Christ), de Andrew Murray;

5. A natureza tripartida do homem - Jessie Penn-Lewis, Mary E. McDonough;

6. Fé - George Müller;

7. Permanecer em Cristo - Andrew Murray, Hudson Taylor;

8. O aspecto subjetivo da morte de Cristo - Jessie Penn-Lewis;

9. A ressurreição de Cristo e Seu Corpo  - T. Austin-Sparks e outros;

10. O plano redentor de Deus - Mary E. McDonough;

11. A Igreja - John Nelson Darby e outros mestres dos Irmãos;

12. Profecia - Robert Govett, D. M. Panton, G. H. Pember;

13. História da Igreja - John Foxe, E. H. Broadbent;

14. Exposição bíblica e outras verdades - John Nelson Darby e os Irmãos de Plymouth;

Logo no início de sua vida cristã, Nee também recebeu grande edificação espiritual e aperfeiçoamento por meio de Margaret E. Barber, missionária anglicana na China.

Através de sua comunhão com ela, Watchman Nee compreendeu que ser cristão é, essencialmente, conhecer e experimentar a vida divina de Deus em Cristo.

Sob o pastoreio de Margaret Barber, aprendeu a dar mais atenção à operação da vida divina dentro de si do que às simples atividades externas. Como expressa Filipenses 2:13:

“Porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade.”


REVELAÇÃO E VIDA

Watchman Nee recebeu uma imensidão de revelação proveniente da Palavra de Deus; ele viu verdadeiramente o conteúdo da revelação divina. O núcleo central dessa revelação consistia em viver uma vida crucificada e ressuscitada, voltada para a vida da Igreja. A experiência que os crentes têm da morte e da ressurreição de Cristo é a base e a pedra de toque de uma vida cristã normal. E o resultado natural dessa vida cristã é a Igreja como Corpo de Cristo, que possui tanto uma expressão universal quanto local.

Nee compreendeu que nós, como crentes, fomos crucificados com Cristo, e que a experiência cristã normal envolve Cristo vivendo em nós por meio da experiência prática de carregar a cruz nas situações humanas do cotidiano (Gálatas 2:20). Muitas das vivências que o levaram a perceber essa verdade estão reunidas em seu livro A Quebra do Homem Exterior e a Libertação do Espírito (The Breaking of the Outer Man and the Release of the Spirit).

Desde o início de seu ministério, o Senhor providenciou circunstâncias que o levaram a negar a vida da alma e a vida natural, a fim de experimentar a vida de ressurreição de Cristo. Watchman Nee entendeu que nós, como crentes, não apenas morremos com Cristo, mas também ressuscitamos com Ele (Romanos 6:4-5, 8).

Por meio da experiência da vida de ressurreição do Cristo que habita em nós, Nee pôde carregar a cruz e participar do companheirismo dos Seus sofrimentos, sendo conformado à Sua morte (Filipenses 3:10). Na vida de ressurreição de Cristo, ele foi capacitado a abandonar o mundo, renunciar ao futuro e negar a si mesmo, a fim de ser liberto do pecado e vitorioso sobre Satanás. Também nessa vida de ressurreição ele servia ao Senhor, trabalhava para Ele e cumpria Sua comissão.

Seus contemporâneos testemunhavam que Watchman Nee constantemente rejeitava sua própria força natural no serviço ao Senhor. Ele temia que a vida natural se intrometesse na obra divina. Ao pregar, contatar pessoas, escrever artigos, corresponder-se com os crentes e até ao tratar de pequenos assuntos, empenhava-se em viver segundo a vida de ressurreição de Cristo. Com tal vida como sua constituição interior, pôde suportar o longo encarceramento e o martírio final.

Além disso, Nee percebeu que a Igreja, como Corpo de Cristo, é simplesmente a ampliação, expansão e expressão do Cristo ressuscitado. Sua visão da Igreja como Corpo de Cristo na ressurreição era profundamente avançada. Seu ministério, centrado no Cristo crucificado e ressuscitado, foi uma dispensação de graça, por meio da qual ministrava o Cristo ressuscitado aos crentes para a edificação de Seu Corpo.

Ele via tanto o aspecto universal desse Corpo — exposto em seu livro A Igreja Gloriosa (The Glorious Church) — quanto a expressão local do Corpo, tratada em A Vida da Assembleia (The Assembly Life), A Vida Cristã Normal da Igreja (The Normal Christian Church Life) e Novas Conversas sobre a Vida da Igreja (Further Talks on the Church Life). 


ENCARGO E COMISSÃO

A revelação divina que Watchman Nee recebeu do Senhor resultou em um duplo encargo e comissão: Dar testemunho do Senhor Jesus, e Estabelecer igrejas locais. O primeiro encargo e comissão nasceu da profundidade do seu conhecimento e da experiência pessoal da morte e ressurreição abrangentes de Cristo. O Senhor o encarregou especificamente de testemunhar essa verdade, e ele respondeu com fidelidade, divulgando inúmeros ensinamentos e escritos sobre o aspecto subjetivo da crucificação e da ressurreição do Senhor, sobre os princípios da vida divina, sobre a supremacia de Cristo e sobre o propósito eterno de Deus.

Essas mensagens estão reunidas em livros como:

• A Vida Vitoriosa (The Overcoming Life),

• Os Vencedores de Deus (God’s Overcomers),

• O Homem Espiritual (The Spiritual Man), e

• O Plano Eterno de Deus (God’s Eternal Plan).

________________________________________

No entanto, a comissão suprema de Watchman Nee não era apenas elevar a experiência individual dos crentes em Cristo, mas edificar uma expressão corporativa e prática de Cristo nas igrejas locais, segundo o modelo divino revelado no Novo Testamento (Atos 11:22; Romanos 16:1; 1 Coríntios 1:2; Apocalipse 2:1, 8, 12, 18; 3:1, 7, 14). Esse foi o encargo final que ele recebeu do Senhor, baseado no que havia visto e experimentado d’Ele.

Seu testemunho pessoal, registrado em 20 de outubro de 1936, descreve com clareza esse chamado: “O que o Senhor me revelou foi extremamente claro: em breve Ele levantaria igrejas locais em diversas partes da China. Sempre que eu fechava os olhos, a visão do nascimento das igrejas locais me aparecia...”

“Quando o Senhor me chamou para servi-Lo, o objetivo principal não era que eu realizasse reuniões de avivamento para que as pessoas ouvissem mais doutrinas bíblicas, nem que eu me tornasse um grande evangelista. O Senhor me revelou que queria edificar igrejas locais em outras localidades para manifestar-Se, a fim de dar testemunho da unidade com base no território local — para que cada santo pudesse exercer seu serviço na igreja e viver a vida da igreja. Deus não deseja apenas uma busca individual por vitória ou espiritualidade, mas uma igreja corporativa e gloriosa apresentada a Si mesmo.”


SOFRIMENTOS

Watchman Nee recebeu do Senhor uma visão incontestável e uma comissão definida acerca da Igreja — e, por causa dessa fidelidade, sofreu intensamente, enfrentando rejeição, oposição e condenação. Mesmo assim, estava disposto a pagar o preço de seguir o Senhor, ainda que isso significasse o custo de sua própria vida. Sua profunda revelação, aliada a seus sofrimentos, resultou em um ministério riquíssimo de vida.

Nee suportou muito sofrimento por causa do ministério do Novo Testamento. Sua absoluta consagração ao Senhor e sua fidelidade à comissão recebida o colocaram sob frequente perseguição e dificuldades permanentes. Em sua batalha pelo avanço da obra do Senhor, foi constantemente atacado por Satanás, o inimigo de Deus. Ao mesmo tempo, estava sob a mão soberana de Deus, reconhecendo nas circunstâncias adversas não apenas um “espinho na carne”, mas, sobretudo, um meio pelo qual Deus tratava seu interior.

Por causa dos ataques de Satanás e dos tratos de Deus, Watchman Nee viveu uma vida marcada por sofrimento. A maior parte desses sofrimentos veio de cinco fontes principais: Pobreza,  doenças,  oposição denominacional, discórdias entre irmãos e irmãs nas igrejas locais e prisão.

Pobreza

Nos primeiros anos de seu ministério, a situação econômica da China era crítica. Ainda assim, Nee viveu unicamente pela fé em Deus, não apenas para seu sustento, mas também para cada aspecto da obra do Senhor. Por essa razão, recusou firmemente qualquer forma de emprego oferecida por pessoas ou organizações. Nos primórdios de seu ministério em Xangai, houve ocasiões em que tinha apenas um pequeno pedaço de pão para comer no dia.

Doenças

Nee também sofreu diversas enfermidades graves. Nos primeiros onze anos de seu ministério (a partir de 1922), suportou tudo sozinho, sem esposa que o apoiasse. Durante esse período, contraiu tuberculose, da qual padeceu por vários anos.

Em 1934, aos 30 anos de idade, casou-se com Charity Chang, uma verdadeira “ajudadora idônea”. Nos anos seguintes, foi acometido por distúrbios crônicos no estômago e por angina pectoris, uma séria doença cardíaca. Jamais foi curado do problema no coração, de modo que seu ministério se manteve sustentado pela vida de ressurreição, e não por sua força física.

Oposição denominacional

Sua firme posição em favor da unidade do Corpo de Cristo era um testemunho vivo contra as divisões causadas pelas práticas denominacionais. Como consequência, era frequentemente criticado e combatido. Falsos rumores e distorções de seu ministério espalharam-se com tal intensidade que, certa vez, ele afirmou: “O Watchman Nee que eles descrevem, eu também o condenaria.”

Dissensões internas

Alguns irmãos e irmãs das igrejas locais foram também fonte de sofrimento para Watchman Nee, devido à imaturidade, ambição e divergências internas. Dois anos após o início da prática da vida da igreja em sua cidade natal (1922), Nee foi temporariamente “excomungado” por alguns cooperadores porque se opôs à ordenação de líderes feita por um missionário denominacional. Embora a maioria dos crentes estivesse ao lado dele, o Senhor não permitiu que se defendesse ou buscasse vindicação. Essa experiência foi uma profunda dor para o seu homem natural.

Prisão e morte

Após a tomada do poder pelo regime comunista na China, Watchman Nee foi preso em março de 1952 por causa do evangelho. Foi falsamente acusado, julgado e condenado em 1956 a quinze anos de prisão. Nee morreu em cativeiro em 30 de maio de 1972.

Homem de Dores

Watchman Nee foi um homem de dores e sofrimento. Durante toda a sua caminhada com o Cordeiro, sofreu intensamente, mas através dessas experiências aprendeu a confiar profundamente no Senhor. Seus sofrimentos também o ajudaram a ser tratado quanto à carne, ao eu, à alma e à vida natural. Por obedecer a esses tratos, Nee não apenas transmitiu ensinamentos e doutrinas, mas realidade viva, adquirida mediante dor e experiência. O que ele aprendeu por meio do sofrimento tornou-se um auxílio inestimável a todos os que foram alcançados por seu ministério e um legado espiritual rico deixado ao Corpo de Cristo — um legado adquirido a preço elevado, o preço final: sua vida.

Os sofrimentos também o capacitaram a receber mais revelação do Senhor por meio das Escrituras. Watchman Nee foi purificado, tratado, quebrantado e constituído pelo Espírito Santo com a vida divina através das aflições. Assim como o apóstolo Paulo, foi preparado e posicionado para receber revelações do Senhor — fruto de comunhão íntima e experiência espiritual dentro da dor.


MEIOS DE MINISTÉRIO

O rico ministério de Watchman Nee foi o resultado direto de revelação e sofrimento. Ele desempenhou esse ministério por meio de diversas formas de serviço: pregando o evangelho, ensinando a Bíblia, viajando, mantendo contato e correspondência com pessoas, organizando conferências, conduzindo treinamentos e produzindo publicações.

Watchman Nee não apenas falava com frequência em público e em particular, mas também era um escritor prolífico. Suas publicações incluíam folhetos evangelísticos, periódicos, jornais, boletins, livros, hinários e até um grande diagrama profético das Escrituras.

O conjunto de suas obras foi posteriormente reunido em sessenta e dois volumes sob o título The Collected Works of Watchman Nee (Obras Completas de Watchman Nee), abrangendo desde sua primeira publicação em 1922 até suas últimas mensagens registradas em 1950.


RELAÇÃO COM SEUS COOPERADORES - WITNESS LEE

Watchman Nee serviu ao Senhor em comunhão com outros irmãos, entre os quais se destacou seu cooperador mais próximo, Witness Lee.

Witness Lee fora criado como batista do sul e foi salvo em 1925, aos dezenove anos. No desejo de conhecer mais profundamente a Bíblia, passou a considerar os artigos e livros de Watchman Nee como os mais precisos na apresentação das verdades bíblicas. Ao começar a corresponder-se com Nee, surpreendeu-se ao descobrir que aquele cristão maduro tinha apenas dois anos a mais do que ele.

Em 1932, Witness Lee convidou Watchman Nee a Chefoo, e ali tiveram seu primeiro encontro pessoal. Durante o tempo que passaram juntos, o ênfase de Nee na experiência da vida divina, em contraste com o mero conhecimento bíblico, aprofundou a comunhão de Witness Lee com o Senhor. No mesmo ano, crentes começaram a reunir-se na casa de Witness Lee, e no ano seguinte a reunião cresceu vigorosamente.

Vendo a necessidade da obra, ambos discerniram que o Senhor desejava que Witness Lee servisse em tempo integral. Quando Watchman Nee o encorajou nesse sentido, Lee recebeu suas palavras como confirmação do chamado divino e passou a servir com Nee, sob seu aperfeiçoamento e comunhão. Watchman Nee aperfeiçoou e provou Witness Lee, preparando-o para assumir maior responsabilidade. Compreendendo que a obra do Senhor na China — iniciada em Xangai através de Nee — deveria manter unidade, Witness Lee renunciou seu trabalho no norte da China e mudou-se para Xangai em 1934, a fim de cooperar mais de perto com Nee.

Eles trabalharam, sofreram, expandiram a obra, receberam revelações e promoveram avivamentos juntos. Witness Lee foi o editor da revista The Christian (O Cristão), publicada por Watchman Nee entre 1934 e 1940, servindo na Livraria Evangélica de Xangai (Shanghai Gospel Bookroom), organizada por Nee. Também foi padrinho de casamento de Watchman Nee.

Com a queda do governo nacionalista em 1949, Nee ficou incerto quanto ao futuro da obra do Senhor na China. Por essa razão, enviou Witness Lee e alguns colaboradores a Taiwan, para que dessem continuidade ao trabalho ali. O último contato entre ambos ocorreu em Hong Kong, em março de 1950, vinte e cinco anos depois de Witness Lee ter conhecido o ministério de Nee. Naquela ocasião, tiveram longo tempo de comunhão sobre o retorno de Watchman Nee à China continental. Ele disse a Lee: “O que faremos com tantas igrejas na terra firme? Preciso voltar para cuidar delas e permanecer com elas pelo testemunho do Senhor.”


MARTÍRIO

Watchman Nee foi guiado pelo Senhor a permanecer na China continental, mesmo diante do perigo, sacrificando a própria vida pela obra divina naquele país. Nesse aspecto, assemelhou-se ao apóstolo Paulo, que declarou em Atos 20:24: “Porém em nada considero a minha vida preciosa para mim mesmo, contanto que complete a minha carreira e o ministério que recebi do Senhor Jesus.”

Sobre essa decisão, o irmão Hsu Jin-chin deu o seguinte testemunho: “Antes de o irmão Nee deixar Hong Kong, o irmão Lee insistiu diversas vezes para que ele não retornasse à China continental. Mas o irmão Nee respondeu: ‘Se uma mãe visse que sua casa está pegando fogo enquanto ela está do lado de fora lavando roupa, o que faria? Mesmo ciente do perigo, ela não correria para dentro da casa? Embora eu saiba que meu retorno está cheio de riscos, sei também que muitos irmãos e irmãs ainda estão lá dentro. Como poderia não voltar?’

Prisão e últimos anos

Watchman Nee foi preso em março de 1952, por causa de sua fé em Cristo e de sua liderança entre as igrejas locais. Foi falsamente acusado, julgado e condenado em 1956 a quinze anos de prisão. Durante todo esse tempo, apenas sua esposa teve permissão para visitá-lo. Não há como saber tudo o que ele experimentou do Senhor em sua longa prisão, mas suas oito últimas cartas revelam lampejos de seu sofrimento, sentimentos e esperança.

Como os censores não permitiam menção direta ao nome do Senhor, ele expressou sua alegria de maneira velada. Em sua carta final, escrita no dia de sua morte, deixou o testemunho: “Em meio à enfermidade, continuo com o coração cheio de alegria.” Assim, ele praticava as palavras de Filipenses 4:4 — “Alegrai-vos sempre no Senhor”.

Watchman Nee morreu em cativeiro em 30 de maio de 1972. Humanamente falando, morreu em miséria e humilhação: nenhum parente, irmão ou irmã estava ao seu lado; não houve aviso formal de sua morte, tampouco funeral. Foi cremado em 1º de junho de 1972. Como sua esposa havia falecido seis meses antes, a irmã mais velha dela foi notificada sobre a morte e a cremação, e recolheu as cinzas, que foram sepultadas junto às da esposa na cidade natal de Nee, Kwanchao, no condado de Haining, província de Chekiang. Em maio de 1989, as cinzas de ambos foram transferidas e sepultadas no “Cemitério Cristão” de Shiangshan, na cidade de Soochow (Suzhou), província de Kiangsu (Jiangsu).

Testemunho de sua sobrinha-neta

A seguir, o relato de sua sobrinha-neta, que acompanhou a irmã da Sra. Nee ao campo de trabalhos forçados para buscar as cinzas: “Em junho de 1972, recebemos uma notificação do campo de trabalho informando que meu tio-avô havia falecido. Minha tia mais velha e eu corremos para o local, mas, ao chegar, soubemos que ele já havia sido cremado. Pudemos apenas ver as cinzas... Antes de partir, ele deixara um pedaço de papel sob o travesseiro, com algumas linhas escritas em letras grandes e trêmulas. Ele queria dar testemunho, até a morte, da verdade que experimentara por toda a vida. 

Essa verdade era: ‘Cristo é o Filho de Deus, que morreu para redimir os pecadores e ressuscitou ao terceiro dia. Esta é a maior verdade do universo. Morro por causa da minha fé em Cristo. — Watchman Nee.’

Quando o oficial do campo nos mostrou o papel, orei para que o Senhor me permitisse gravar aquelas palavras no coração...” “Meu tio-avô partiu fiel até a morte. Com uma coroa manchada de sangue, foi estar com o Senhor. Embora Deus não tenha atendido seu último desejo — sair vivo da prisão e reencontrar a esposa —, o Senhor preparou algo ainda melhor: eles se reuniram diante d’Ele.”

Legado espiritual

Durante o longo encarceramento de Watchman Nee, seu corpo esteve preso, mas seu ministério não (II Timóteo 2:9). Sob a soberania divina, sua obra se espalhou por todo o mundo, tornando-se rica fonte de vida para todos os cristãos que buscam o Senhor. Seu encargo final era a propagação e edificação da Igreja como casa de Deus, o tabernáculo divino.

Embora seu tabernáculo terreno (o corpo físico) tenha sido desfeito, a edificação de Deus obtida por meio de seu ministério permanece, crescendo e se expandindo por toda a Terra. Quando foi preso em 1952, já existiam aproximadamente quatrocentas igrejas locais na China, além de mais de trinta igrejas estabelecidas nas Filipinas, Singapura, Malásia, Tailândia e Indonésia. Hoje, há mais de duas mil e trezentas igrejas locais em todo o mundo, fruto do ministério fiel e abundante de Watchman Nee.


SP - 11/11/2025.