O capítulo 18 do Livro de Jó é como uma verdadeira peça de acusação dentro de um grande processo literário. Bildad, "amigo" de Jó, levanta-se para o seu segundo discurso e tenta demonstrar, que todo sofrimento visível é prova irrefutável de culpa oculta. Ele parte da doutrina clássica da retribuição imediata – o princípio segundo o qual o justo sempre prospera e o ímpio é castigado ainda nesta vida –, tão presente no Deuteronômio e na sabedoria tradicional de Israel.
Para sustentar a tese, Bildad apresenta uma lista impressionante de dezessete imagens de castigo: a luz que se apaga, o laço que prende os pés, a fome que espera ao lado, a doença que devora a pele, o enxofre lançado sobre a tenda, a descendência cortada. Cada imagem corresponde a uma pena conhecida no antigo Oriente Próximo e na própria Torá: perda de bens, banimento, extinção da família (o temido karet) e morte sem sepultura digna. É uma argumentação que procura ser exaustiva e sem brechas.
Do ponto de vista técnico, o discurso é perfeito dentro da lógica retributiva: se o castigo chegou, é porque a culpa existiu antes. Não há espaço para inocente sofredor. Bildad age como um promotor que dispensa testemunhas e provas adicionais, pois, para ele, o próprio sofrimento já é a sentença executada. Quem cai na rede, diz ele, foi porque seus próprios planos o prenderam – uma ideia que lembra a responsabilidade objetiva pura.
Ocorre que o leitor do livro inteiro já conhece o prólogo (capítulos 1 e 2), onde vemos que o sofrimento de Jó foi autorizado num conselho celestial, sem qualquer culpa pessoal prévia. Portanto, o que Bildad considera prova cabal de delito é, na verdade, uma prova permitida por Deus para testar a fidelidade do justo. A tese da retribuição automática entra em colapso diante de um caso concreto de sofrimento inocente.
Ao longo do livro, especialmente nos discursos de Eliú e na teofania final, fica evidente que a realidade é bem mais complexa do que a fórmula “sofreu = pecou”. O próprio Deus, ao falar do redemoinho (capítulos 38–41), não explica o sofrimento, mas mostra que a justiça divina transcende os cálculos humanos simples. A sabedoria não está em aplicar a régua da retribuição, mas em confiar mesmo sem compreender tudo.
No epílogo do Livro (42.7–9), Deus pronuncia a sentença definitiva: declara que Jó falou o que era reto a Seu respeito e que os amigos, inclusive Bildad, não o fizeram. Os três são obrigados a trazer oferta e pedir que Jó interceda por eles. Assim, o capítulo 18, tão bem construído do ponto de vista da antiga teologia da retribuição, acaba servindo como prova do equívoco dessa visão quando aplicada de forma rígida e sem misericórdia. O que parecia uma acusação irrebatível torna-se, no final, um testemunho da limitação humana diante do mistério da justiça divina.
SP-23/11/2025.