sexta-feira, dezembro 19, 2025

As Três Bestas do Apocalipse

 

Apóstolo João


João Cruzué

O Apocalipse apresenta três figuras do mal em aliança — o Dragão, a Besta que sobe do mar e a Besta que sobe da terra (o falso profeta) — formando uma paródia profana da Trindade. Essas figuras não são meros personagens isolados, mas expressões articuladas do mal espiritual, político e religioso. A tradição cristã leu esses textos de maneiras distintas conforme o método teológico adotado. A seguir, são expostas, de modo contínuo e comparativo, as interpretações de Stanley M. Horton, John F. Walvoord, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, com cinco parágrafos dedicados a cada Besta.

O Dragão, em Apocalipse 12, é compreendido por Stanley Horton como Satanás pessoal e real, a fonte espiritual de toda perseguição e engano. Para ele, o texto não permite uma leitura meramente simbólica: trata-se do inimigo histórico da Igreja, derrotado judicialmente pela cruz, mas ainda ativo no tempo presente. Horton enfatiza que o Dragão atua por meio de sistemas e poderes humanos, nunca de forma isolada.

John Walvoord interpreta o Dragão de maneira igualmente literal, mas com forte ênfase escatológica. Para ele, Apocalipse 12 descreve eventos objetivos ligados ao fim dos tempos, incluindo a expulsão definitiva de Satanás da esfera celestial e sua fúria concentrada contra Israel e os santos. O Dragão é um ser pessoal, inteligente e estrategista, cujo tempo é curto e delimitado.

Santo Agostinho vê o Dragão como a personificação do mal espiritual que atravessa toda a história. Em sua teologia das duas cidades, o Dragão é o princípio animador da Cidade dos Homens em oposição à Cidade de Deus. Não está restrito a um momento final, mas age continuamente por meio da soberba, da violência e da idolatria do poder.

São Tomás de Aquino, em continuidade com Agostinho, entende o Dragão como Satanás enquanto intelecto decaído, cuja ação se dá primariamente no plano moral e racional. Para Tomás, o Dragão não cria o mal, mas o parasita, desviando a vontade humana da lei natural e divina. Sua atuação é real, porém sempre subordinada à providência de Deus.

Comparativamente, os quatro concordam que o Dragão é Satanás pessoal; divergem, porém, quanto ao foco temporal. Horton e Walvoord enfatizam sua atuação escatológica direta, enquanto Agostinho e Tomás o veem como um agente permanente da história humana. Ainda assim, todos afirmam que seu poder é limitado e já condenado.

A Besta que sobe do mar (Apocalipse 13:1–10) é interpretada por Stanley Horton como um sistema político anticristão, inspirado por Satanás e manifestado em impérios e governos opressores. Horton admite a possibilidade de uma liderança pessoal final, mas insiste que a Besta já opera historicamente sempre que o poder se absolutiza e persegue os santos.

John Walvoord entende essa Besta como o Anticristo literal, um governante mundial futuro que exercerá autoridade global real. Para ele, a conexão com Daniel 7 é direta e histórica, apontando para um império final concreto. Diferente de Horton, Walvoord concentra-se na figura pessoal que encabeça o sistema.

Santo Agostinho rejeita a identificação primária da Besta com um indivíduo específico. Para ele, a Besta do mar é a Civitas Terrena em sua expressão máxima, o poder político que se rebela contra Deus e exige obediência absoluta. Roma pagã foi uma figura histórica da Besta, mas não sua realização final.

São Tomás de Aquino harmoniza essas leituras ao afirmar que a Besta representa o corpo moral do poder injusto. Ele admite a possibilidade de um líder final anticristão, mas sustenta que a essência da Besta está na perversão da finalidade da autoridade, quando o governo deixa de servir ao bem comum e se torna tirânico.

No comparativo, percebe-se que Horton e Agostinho privilegiam a dimensão sistêmica e histórica, Walvoord enfatiza a manifestação pessoal futura, e Tomás atua como síntese, integrando indivíduo e estrutura sob um critério moral. Todos, porém, concordam que a Besta do mar representa o poder político hostil a Deus.

A Besta que sobe da terra, o Falso Profeta (Apocalipse 13:11–18), é vista por Stanley Horton como um poder religioso enganador, que legitima a primeira Besta por meio de sinais e falsa espiritualidade. Horton alerta que essa Besta se parece com cordeiro, mas fala como dragão, simbolizando líderes religiosos que mantêm aparência de piedade enquanto traem a verdade.

John Walvoord interpreta o Falso Profeta como um líder religioso literal e futuro, aliado direto do Anticristo. Para ele, trata-se de uma figura histórica concreta que promoverá a adoração da primeira Besta e imporá a marca com consequências econômicas reais, ainda que envolva decisão consciente de lealdade.

Santo Agostinho entende essa Besta como a corrupção da religião, quando o culto deixa de apontar para Deus e passa a servir ao poder humano. A marca da Besta, para ele, não é física, mas espiritual: está na mente e nas obras daqueles que aderem aos valores da Cidade dos Homens.

São Tomás de Aquino segue Agostinho ao interpretar a marca como adesão intelectual e prática ao erro. Para Tomás, o Falso Profeta representa o mau uso da razão e da fé, quando a religião se afasta da verdade e se torna instrumento de dominação moral e social.

Comparativamente, Horton e Agostinho enfatizam o engano religioso presente, Walvoord destaca a figura futura literal, e Tomás fornece a leitura ética que integra ambas. Os quatro concordam que o maior perigo dessa Besta não é a violência, mas o engano espiritual travestido de piedade.

A análise conjunta revela que, apesar das diferenças metodológicas, os quatro teólogos convergem em pontos essenciais: as três Bestas representam um mal organizado, articulado e temporário, sempre subordinado à soberania de Deus. Horton chama a Igreja ao discernimento espiritual, Walvoord à vigilância escatológica, Agostinho à leitura ética da história e Tomás à ordem moral da razão iluminada pela fé. Em todos, a mensagem final do Apocalipse permanece a mesma: o Dragão, as Bestas e todo poder anticristão serão derrotados, e o Cordeiro reina para sempre.

quinta-feira, dezembro 18, 2025

A Visão do Rio do Profeta Ezequiel

 

Rio de Ezequiel 47

João Cruzué

A visão do rio profeta Ezequiel no capítulo 47 apresenta uma das mais poderosas mensagens de esperança e renovação das Escrituras. A imagem das águás que brotam do próprio trono de Deus, começando bem pequeno, mas crescendo progressivamente, revela o poder transformador do Espírito Santo. Esse rio representa muito mais que águas comuns — ele é a manifestação divina que traz renovação completa a tudo que toca. Onde suas águas chegam, a vida floresce e o impossível vem à luz.

Água aos Tornozelos: O Primeiro Contato

Quando Ezequiel começa sua jornada pelo rio, a água chega apenas aos tornozelos. Este nível representa o início da experiência espiritual, o primeiro toque com a presença divina. Nesta fase, ainda há total controle sobre os movimentos, os pés permanecem firmes no chão e existe uma sensação de segurança. É possível caminhar livremente, escolher a direção e até voltar atrás sem dificuldade. Muitas pessoas permanecem confortavelmente neste estágio, experimentando apenas o suficiente da presença de Deus para refrescar os pés cansados da jornada, mas sem se arriscar a ir mais fundo.

Este nível inicial traz bênçãos reais, mas limitadas. A água refresca, oferece alívio, proporciona algum conforto. No entanto, permanece apenas uma experiência periférica, tocando somente as extremidades da vida. As mudanças são superficiais, ainda que genuínas. Existe uma consciência da presença divina, mas ela não permeia completamente a existência. A transformação acontece, mas de forma parcial e contida.

Água aos Joelhos: Dobrar-se para Avançar

Mil côvados adiante, Ezequiel encontra a água na altura dos joelhos. Este nível representa um avanço significativo na jornada espiritual. Para continuar caminhando, torna-se necessário levantar as pernas com mais esforço, e cada passo requer intenção deliberada. A água começa a oferecer resistência, e o movimento exige mais energia do que antes. Este é o nível da disciplina, onde a vida espiritual deixa de ser apenas ocasional e passa a exigir compromisso genuíno.

Os joelhos também simbolizam a postura de oração e adoração. Neste estágio, desenvolve-se uma compreensão mais profunda da necessidade de humildade e rendição. Não é possível atravessar o rio com a mesma facilidade que antes — cada passo aqui requer consideração. A caminhada se torna mais lenta, mais ponderada. De joelhos, muitos descobrem que a vida espiritual genuína demanda mais do que momentos ocasionais de devoção; ela exige persistência diária e determinação constante para prosseguir, mesmo quando há resistência.

Água à Cintura: O Ponto de Equilíbrio

Mais mil côvados mais à frente, a água alcança a cintura de Ezequiel. Este é talvez o nível mais desafiador, pois representa um ponto de transição crítico. A cintura é o centro de gravidade do corpo, e quando a água chega nesta altura, o equilíbrio se torna precário. Não é mais possível ignorar a força da corrente. Ela empurra, puxa, exige atenção constante. Caminhar agora  requer esforço considerável, e existe sempre a possibilidade de ser derrubado se não houver cuidado.

Neste nível, metade do corpo está submersa, enquanto a outra metade permanece acima da água. Simbolicamente, representa um conflito: o desejo de manter o controle e a necessidade de render-se completamente. É um estágio de tensão, onde a tentação de recuar para águas mais rasas se torna forte. Muitos retrocedem neste ponto, desconfortáveis com a perda progressiva de controle e autonomia. A corrente é forte o suficiente para arrastar, mas ainda é possível resistir a ela com esforço próprio.

Este é também o nível onde as escolhas se tornam cruciais. Continuar avançando significa aceitar que não será mais possível manter os pés firmemente plantados no chão. Significa reconhecer que a força da corrente é maior que a força humana, e que a próxima etapa exigirá rendição total. É o último momento onde ainda existe a ilusão de controle, o último ponto onde se pode escolher entre dirigir a própria jornada ou entregar-se completamente ao fluxo divino.

Águas Profundas: Mergulho Total

Finalmente, após mais mil côvados, o rio se torna tão profundo que os pés não alcançam mais o fundo. Este é o nível da rendição completa, onde toda ilusão de controle desaparece. Não é mais possível caminhar — a única opção é nadar, permitindo que a água sustente todo o peso do corpo. Neste estágio, depende-se inteiramente da capacidade da água de manter à tona. Lutar contra a corrente não apenas se torna inútil, mas também perigoso.

É neste nívelque se atinge a maturidade espiritual plena, onde a confiança substitui completamente o controle. Aqui, não se escolhe a direção — é a corrente que leva. Não se determina a velocidade — é o rio que decide. É uma experiência de total dependência, onde cada respiração depende da capacidade de permanecer na superfície, flutuando nas águas que agora dominam completamente. Para muitos, este é o nível mais libertador, pois finalmente cessa a luta exaustiva de tentar dirigir a própria vida.

Nas águas profundas, descobrem-se dimensões da presença divina impossíveis de experimentar em níveis mais rasos. A intimidade se aprofunda, a perspectiva se expande, e a vida adquire uma fluidez que antes parecia impossível. O que parecia perda de controle revela-se como verdadeira liberdade. O rio carrega para lugares que jamais poderiam ser alcançados pelo esforço próprio, e a jornada se transforma de uma caminhada trabalhosa em um fluxo natural e poderoso.

A Transformação do Mar Morto

O destino do rio também carrega significado profundo. As águas descem em direção ao Mar Morto, um lugar historicamente estéril onde nenhuma forma de vida poderia subsistir. Quando o rio celestial alcança essas águas mortas, ocorre uma transformação miraculosa — o que estava morto ganha vida, peixes abundam onde antes nada existia, e a esterilidade dá lugar à fertilidade. Esta imagem representa o poder restaurador divino sobre situações aparentemente sem solução — relacionamentos destruídos, esperanças perdidas, ciclos de dor que parecem eternos.

Árvores de Cura e Provisão

Às margens do rio, árvores especiais crescem, produzindo frutos todos os meses e folhas com propriedades curativas. Esta imagem representa uma vida espiritual abundante e frutífera, que não depende de estações ou circunstâncias externas. A presença de Deus gera provisão contínua e cura permanente. Essas árvores simbolizam aqueles que permanecem conectados à fonte divina, experimentando renovação constante e tornando-se instrumentos de bênção e restauração para outros.

A Mensagem Perene

A mensagem central de Ezequiel 47 permanece relevante através dos séculos: o toque divino transforma radicalmente qualquer situação. A progressão do rio convida a uma jornada de aprofundamento contínuo, onde cada nível revela novas dimensões da vida espiritual. Não importa quão árida, morta ou impossível uma circunstância pareça — as águas que fluem do trono celestial têm poder para renovar completamente. Esta visão profética oferece esperança genuína de que a renovação é sempre possível quando há abertura para mergulhar nas águas da vida.

SP-18/12/2025