domingo, novembro 23, 2025

Critica Cristã ao Humanismo Secular

 

Sol da Justiça

João Cruzué

O humanismo secular, em sua essência, estabelece o ser humano como centro absoluto da realidade e fundamento último da verdade, da moral e do sentido da vida. Ao rejeitar qualquer referência ao transcendente e reduzir a dignidade humana a um projeto exclusivamente racional e autossuficiente, essa corrente filosófica propõe uma visão antropocêntrica radical: o homem como medida de todas as coisas, independente de Deus e autor único de seus próprios valores. 

Embora apresente contribuições relevantes — como a defesa dos direitos civis, da liberdade e da valorização da ciência —, o humanismo secular incorre em profundas contradições quando pretende afirmar uma ética universal sem reconhecer um fundamento absoluto que lhe dê consistência.

Do ponto de vista cristão, a dignidade humana e os valores éticos não podem ser sustentados solidamente quando desvinculados de sua origem transcendente. Se o ser humano é apenas um produto do acaso biológico e cultural, e se não existe verdade objetiva nem propósito absoluto, então qualquer discurso sobre dignidade, justiça ou solidariedade torna-se frágil e relativo. A história demonstra que, quando a autonomia humana é elevada ao nível de princípio supremo, o resultado não é emancipação, mas frequentemente opressão: regimes totalitários do século XX, sustentados por discursos pseudocientíficos e racionalistas, provaram como o ser humano sem referência moral transcendente torna-se capaz de atrocidades legitimadas pela própria razão orgulhosa.

O humanismo secular proclama liberdade, mas muitas vezes a reduz à capacidade de cada indivíduo estabelecer seus próprios critérios sem responsabilidade diante de um Criador. 

Nessa lógica, não há fundamento sólido para condenar injustiças objetivas: se cada consciência é a única autoridade sobre si mesma, qualquer padrão moral comum torna-se arbitrário. Por isso, o secularismo frequentemente oscila entre relativismo moral e autoritarismo ético — pois, quando não há verdade objetiva, os mais fortes acabam impondo seus interesses sob o discurso de progresso ou racionalidade.

A perspectiva cristã, ao contrário, afirma que a verdadeira dignidade humana está enraizada no fato de que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus (imago Dei) e que sua liberdade só encontra plenitude quando orientada à verdade e ao bem. O Evangelho afirma que não somos autossuficientes, mas dependentes da graça e do amor divino, e que a autonomia absoluta não liberta — ela escraviza ao orgulho, ao egoísmo e à ilusão de autodomínio. 

Cristo ensina que a grandeza humana se manifesta no serviço e no amor sacrificial, e não na exaltação soberba de si mesmo.

O humanismo secular prega esperança baseada no progresso humano, mas ignora a realidade profunda do pecado e da inclinação egoísta que perpassa todas as estruturas sociais. Sem reconhecimento da queda e da necessidade de redenção, sua confiança irrestrita no homem torna-se ingenuidade teórica e imprudência prática. A história contemporânea — marcada por guerras, desigualdades extremas, exploração e cultura de descarte — evidencia que o progresso técnico não produz necessariamente progresso moral. 

Como dizia C. S. Lewis, "não adianta acelerar o trem se ele está indo na direção errada."

A crítica cristã afirma que o humanismo secular, ao tentar exaltar o homem sem Deus, acaba por reduzi-lo. Um humanismo realmente pleno só pode existir quando reconhece que a dignidade humana é dom e não conquista, e que o bem comum não se constrói apenas com ciência e poder, mas com amor, verdade, justiça e humildade diante do Criador. 

Portanto, uma sociedade verdadeiramente humana não é aquela onde o homem ocupa o trono, mas aquela onde Cristo ocupa o centro — pois somente quando Deus é Deus, o homem pode ser verdadeiramente homem.


SP- 23/11/2025.



Capítulo 18 do Livro de Jó - Bildad o Promotor e a Doutrina da Retribuição Imediata

 

Bildade - o Promotor

João Cruzué

O capítulo 18 do Livro de Jó é como uma verdadeira peça de acusação dentro de um grande processo literário. Bildad, "amigo" de Jó, levanta-se para o seu segundo discurso e tenta demonstrar, que todo sofrimento visível é prova irrefutável de culpa oculta. Ele parte da doutrina clássica da retribuição imediata – o princípio segundo o qual o justo sempre prospera e o ímpio é castigado ainda nesta vida –, tão presente no Deuteronômio e na sabedoria tradicional de Israel.

Para sustentar a tese, Bildad apresenta uma lista impressionante de dezessete imagens de castigo: a luz que se apaga, o laço que prende os pés, a fome que espera ao lado, a doença que devora a pele, o enxofre lançado sobre a tenda, a descendência cortada. Cada imagem corresponde a uma pena conhecida no antigo Oriente Próximo e na própria Torá: perda de bens, banimento, extinção da família (o temido karet) e morte sem sepultura digna. É uma argumentação que procura ser exaustiva e sem brechas.

Do ponto de vista técnico, o discurso é perfeito dentro da lógica retributiva: se o castigo chegou, é porque a culpa existiu antes. Não há espaço para inocente sofredor. Bildad age como um promotor que dispensa testemunhas e provas adicionais, pois, para ele, o próprio sofrimento já é a sentença executada. Quem cai na rede, diz ele, foi porque seus próprios planos o prenderam – uma ideia que lembra a responsabilidade objetiva pura.

Ocorre que o leitor do livro inteiro já conhece o prólogo (capítulos 1 e 2), onde vemos que o sofrimento de Jó foi autorizado num conselho celestial, sem qualquer culpa pessoal prévia. Portanto, o que Bildad considera prova cabal de delito é, na verdade, uma prova permitida por Deus para testar a fidelidade do justo. A tese da retribuição automática entra em colapso diante de um caso concreto de sofrimento inocente.

Ao longo do livro, especialmente nos discursos de Eliú e na teofania final, fica evidente que a realidade é bem mais complexa do que a fórmula “sofreu = pecou”. O próprio Deus, ao falar do redemoinho (capítulos 38–41), não explica o sofrimento, mas mostra que a justiça divina transcende os cálculos humanos simples. A sabedoria não está em aplicar a régua da retribuição, mas em confiar mesmo sem compreender tudo.

No epílogo do Livro  (42.7–9), Deus pronuncia a sentença definitiva: declara que Jó falou o que era reto a Seu respeito e que os amigos, inclusive Bildad, não o fizeram. Os três são obrigados a trazer oferta e pedir que Jó interceda por eles. Assim, o capítulo 18, tão bem construído do ponto de vista da antiga teologia da retribuição, acaba servindo como prova do equívoco dessa visão quando aplicada de forma rígida e sem misericórdia. O que parecia uma acusação irrebatível torna-se, no final, um testemunho da limitação humana diante do mistério da justiça divina.

SP-23/11/2025.