João Cruzué
O Capítulo 3 de Miqueias é o ponto mais alto da indignação do profeta contra as lideranças de Judá e Israel. O capítulo se divide em três golpes certeiros, três oráculos que desnudam a corrupção institucional do século VIII a.C. Logo no início, o profeta dirige-se aos governantes que deveriam guardar o mishpat, mas trocaram a justiça pela ganância. Para expor a gravidade do pecado, Miqueias usa imagens que ferem a alma: líderes que arrancam a pele do povo, quebram seus ossos e os lançam na panela como se fossem carne comum. Não era exagero poético; era a radiografia de um sistema que esmagava os vulneráveis por meio de tributos abusivos, perda de propriedades, escravidão por dívida e um Judiciário vendido ao suborno. E diante dessa violência institucionalizada, o profeta anuncia um juízo proporcional: quem não ouviu o clamor dos pobres não será ouvido quando clamar; Deus esconderá o rosto no dia da angústia.
Na segunda parte, Miqueias volta sua mirada contra outro grupo igualmente responsável pela decadência espiritual do povo: os profetas mercenários. Eles tinham transformado a Palavra do Senhor em moeda de troca. Era “shalom” para quem pagava, e ameaça para quem não sustentava seu ministério. A sentença divina cai pesada: para esses homens, o dia se tornaria noite; não haveria visão, não haveria resposta; cobririam o rosto em vergonha porque Deus já não falaria com eles. Em contraste, o profeta verdadeiro se apresenta: “Mas eu estou cheio do poder do Espírito do SENHOR.” Ou seja: onde há vocação genuína, há coragem moral, discernimento espiritual e força para denunciar o pecado — mesmo quando a mensagem fere, mesmo quando custa relacionamentos, posição ou sustento.
O terceiro oráculo abre o leque e coloca toda a engrenagem de Jerusalém sob avaliação. Miqueias vê uma corrupção com três pilares: justiça pervertida, obras públicas construídas à base de sangue, e religião financiada por interesses. Juízes que só julgam mediante propina, sacerdotes que ensinam por salário, profetas que adivinham por dinheiro. E o mais grave: todos esses líderes ainda tinham a ousadia de dizer: “O Senhor está conosco; nenhum mal nos alcançará.” Acreditavam que a simples existência do Templo funcionava como escudo moral. Confundiam privilégio religioso com aprovação divina. Enquanto isso, edificavam uma cidade brilhante sobre os ombros esmagados dos pobres.
É nesse cenário que Miqueias pronuncia uma das profecias mais ousadas da Bíblia: Sião seria arada como um campo, Jerusalém se tornaria em montes de ruínas, e o monte do Templo viraria matagal. A palavra foi tão séria que, um século depois, foi lembrada no julgamento de Jeremias e serviu para lhe salvar a vida. O recado era claro: quando a injustiça domina, nem o Templo — símbolo máximo da presença de Deus — é poupado. Deus não compactua com estruturas religiosas que se tornaram capa para opressão. A cidade santa podia ostentar sua glória, mas suas fundações estavam manchadas.
Miqueias 3 continua a nos confrontar hoje. Questiona líderes: estamos servindo ou nos servindo? Pregamos a verdade ou apenas o que sustenta nossa reputação? Temos coragem de enfrentar sistemas injustos? E questiona a Igreja: não corremos nós o risco de presumir que Deus está conosco apenas porque mantemos templos, programas e prosperidade? Nosso conforto não pode ser construído em cima do sofrimento alheio. A mensagem permanece tão viva quanto no dia em que foi pronunciada.
O capítulo termina ecoando uma verdade que atravessa séculos: Deus não fecha os olhos para a exploração dos fracos; muito menos quando ela é praticada pelas mãos de quem deveria protegê-los. A denúncia de Miqueias desemboca em seu chamado definitivo, que resume a ética do Reino: praticar a justiça, amar a misericórdia e andar humildemente com Deus. Tudo o que passa disso é religião sem vida — e liderança sem autoridade diante do Senhor.




