João Cruzué
O encontro de Jesus com a mulher
siro-fenícia revela um dos momentos mais enigmáticos e, ao mesmo tempo, mais abençoado
do Evangelho. Jesus havia se retirado para a região de Tiro e Sidom —
território gentio — em uma espécie de recolhimento. Ali, onde jamais se
pensaria em uma intervenção divina, eis que surge uma mulher estrangeira,
descrita por Marcos como “grega, siro-fenícia de origem”. Aos olhos dos judeus, ela representava tudo de
desprezível. Não tinha direito à promessa, etnia gentia, religião errada,
território errado. Mesmo assim, ela veio. Seu pedido não era para si, mas para
sua filha endemoninhada, revelando uma fé que nasce da dor, mas também da
esperança.
O primeiro silêncio de Jesus,
relatado por Mateus, não era rejeição, mas provocação pedagógica. Jesus, ao
dizer que veio “apenas às ovelhas perdidas da casa de Israel”, expôs um limite
que a própria missão messiânica ultrapassaria mais tarde. A mulher, contudo,
não recuou; e continuou firme. Avançou. Prostrou-se. Adorou. Insistiu. E quando
Jesus utilizou a dura expressão — “Não é bom tirar o pão dos filhos e lançá-lo
aos cachorrinhos” — Ele não a humilha, mas revela a tensão histórica entre
judeus e gentios. A resposta dela, entretanto, se torna uma das declarações de
fé mais extraordinárias das Escrituras: “Sim, Senhor; mas até os cachorrinhos
comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos.”
Ali, a barreira entre a promessa
e o estrangeiro caiu por terra.
A fé da mulher siro-fenícia não
exigiu privilégios; ela apenas reconheceu que uma migalha da graça de Cristo
é suficiente para alterar toda a realidade. Sua confiança desarmou qualquer
limite cultural, religioso ou étnico. Ela não disputou a primazia de Israel,
mas discerniu que a misericórdia de Deus é tão abundante que transborda mesas,
templos e fronteiras. O que poucos em Israel perceberam, ela enxergou: Jesus era,
é e será suficiente. Melhor: Jesus é
mais do que suficiente.
O milagre que se seguiu — a
libertação imediata de sua filha — foi a assinatura divina sobre uma fé que
ultrapassou séculos de separação. O Reino de Deus avançou, chegando primeiro
justamente a quem estava mais distante. Esse encontro, portanto, não é
casual; ele antecipa a inclusão dos gentios, confirma que a fé é a chave que
abre portas e demonstra que nenhum limite humano consegue aprisionar a
misericórdia divina. Cristo não mudou Sua vontade; Ele revelou progressivamente
seu alcance.
A história da mulher siro-fenícia
nos desafia ainda hoje.
Quantas vezes aceitamos limites
que Deus não colocou? Quantas vezes desistimos ao primeiro silêncio? A fé dessa
mulher nos ensina a insistir, a permanecer, a adorar mesmo quando não
entendemos, e a reconhecer que mesmo quando tudo parece fechado, há migalhas
do Reino caindo — e nelas há poder suficiente para transformar vidas inteiras.
Assim como aquela mulher, somos convidados a ultrapassar barreiras e a
descobrir que a graça de Cristo é maior do que qualquer rótulo, distância ou
impossibilidade.
“Humilhai-vos, portanto,
sob a poderosa mão de Deus,
para que ele,
em tempo oportuno, vos exalte;”